ROQUE SANTEIRO
A quitanda. Muito sol e a quitandeira à sombra da mulemba. Laranja, minha senhora, laranjinha boa! A luz brinca neste bairro que é quase uma cidade. Ali, se mora, se brinca e se vende. Chama-se Roque Santeiro. Na capital Luanda. Cidade quente, de jogo de claros e escuros de tudo. Ali, que não é um mercado qualquer, foi inspirado no assunto que dominava as rodas de conversa da maior cidade do país na época de sua fundação, a telenovela brasileira. É um apelido que pegou e ninguém sabe exatamente por quê.
O Roque tem de tudo. Se traduz no melhor retrato de uma harmonia caótica e bem resolvida. No auge, em meados dos anos 90, era considerado o maior entreposto a céu aberto ao sul do Sahara. Ali era o bairro da “Lixeira”. Nas Musseque -é como se chamam as favelas de lá-, não há água, não há luz e é coberta de poeira depois de meses de seca.
Centenas de milhares de barracas -algumas registradas oficialmente, outras tantas não- se entrelaçavam nas vielas. Encontra-se de tudo o que existe e pode ser comercializado. Parafusos, sexo, cigarros, bicicletas, eletrônicos, dólares, euros, filmes, CDs e DVDs piratas, perfumes franceses, whisky escocês, ternos italianos, peças para automóveis do mundo inteiro, caixões feitos ali mesmo, legumes e verduras direto da horta, peixe fresco recém-pescado do Atlântico, carne de boi, de porco, de caça, de frango, material esportivo, roupas do Brasil com a última moda da novela das 9, modelitos fashion da Europa e dos Estados Unidos, livros didáticos e remédios e medicamentos doados por governos estrangeiros para serem distribuídos de graça, material de construção, apliques de cabelo e o que mais se imaginar ou precisar.
É uma infinidade de produtos e serviços à disposição do freguês. À pronta entrega, de forma a fazer inveja a qualquer loja de departamentos do mundo, mesmo virtual. Se não encontrar o que procura no Roque, pode estar certo que é porque não existe…
Numa sociedade sufocada por um Estado de quase uma burocracia soviética, o Roque é um raro local em Angola em que o empreendedorismo é premiado e as oportunidades estão disponíveis a todos. Mercado livre é uma expressão que se aplica ao Roque como a outros poucos lugares do mundo. Irônico num país que ainda traz uma foice e um martelo em sua bandeira.
O mercado é o caminho natural a ser escolhido por muitos no leque das poucas opções à disposição. De lá, esses muitos tiram seus sustentos, fazem dinheiro, conquistam amigos e conseguem sobreviver.
Está localizado no Sambizanga, um dos bairros mais populosos e violentos de Luanda, o mercado espalha-se por 1 quilômetro quadrado, com vista privilegiada para o porto e a baía de Luanda. Caminhar por ele requer agilidade, capacidade de driblar a sujeira e as protuberâncias. Carregadores com seus carrinhos de mão abarrotados, candongueiros enlouquecidos e compradores apressados que sabem seus caminhos e não se dispõem a se desviar.
Um mergulho nas entranhas do bairro/mercado requer uma aguçada sensibilidade para, sob uma superfície harmônica e frequentemente festiva, enxergar mal resolvidas tensões étnicas, políticas e regionais que permeiam a sociedade angolana, da qual o mercado é um inchado microcosmo. Ali é um lugar de coabitação, não de integração.
A primeira visão do Roque é intimidadora. Imponente em sua dimensão e reputação faz com que os sentidos de alerta fiquem mais sensíveis, principalmente visão e olfato. O nariz é o órgão humano que mais intensamente vivencia o mercado -nem sempre com prazer. Deixar pela primeira vez a estrada principal que o margeia, e que faz a ligação com o centro de Luanda, a meros cinco quilômetros dali, e entrar no emaranhado de vielas comerciais que ficam um pouco abaixo da pista, é como mergulhar em um novo mundo.
Logo que se chega, a sensação é de caos absoluto, uma mistura frenética de gente, sons, odores, poeira e lama fluindo sem trégua entre um labirinto de barracas que parecem prestes a desabar com o menor esbarrão. Nas vielas, porém, aos poucos o lugar vai apresentando uma lógica própria, e o receio inicial dão lugar a uma sensação de acolhimento.
Descobre-se logo que as barracas são agrupadas por setores em que se concentra a venda de determinados produtos. Nas extremidades ficam aquelas que oferecem comida, cada uma especializada na culinária de alguma região ou etnia angolana. No meio estão os improvisados cinemas, com sessões ininterruptas de filmes de ação ou clipes de kuduro, espécie de funk angolano que é a trilha sonora dos musseques.
Ali, as pessoas passam a vida a vender e a brincar sempre. De corações aflitos, parecem que jogam cabra-cega. No Roque pode-se ver a zungueira, vendedora ambulante de Angola. Mulher guerreira, com seus filhos nas costas, carrega a cesta, sobrevivência para o seu dia.
A quitandeira que vende frutas, mas muitos vendem qualquer coisa. “Compra laranja doce, compra-me também o amargo desta tortura da vida sem vida. Compra-me a infância do espírito este botão de rosa chamado Roque Santeiro que não abriu a princípio impelido e ainda para um início.
Neste local esgotam-se os sorrisos. São apenas choro e desespero. Mas ninguém precisa saber. É o orgulho é a esperança por um dia melhor. Como foi o sangue dos filhos, amassado no pó da terra batida enterrado pelas carroças e o suor embebido nos fios dos rádios que muitas vezes tocavam músicas que soam estranhas para um estrangeiro, mas que traz alegria aos angolanos.
No Roque Santeiro a beleza dos tecidos africanos, tradição que transforma cor em alegria é contrastante com a sujeira, com o mau cheiro, com tudo. Mas o que importa o dinheiro que transforma.
A despeito da riqueza emergente, o futuro de Angola e de Roque Santeiro são incertos. Uma coisa, porém, é clara: hoje, mesmo depois de todas as transformações, sobretudo cosméticas, que mergulharam o país na era dos shopping centers e hipermercados de rede, não existe nenhum entreposto em Angola onde se encontre tanta variedade de produtos e de gente como no Roque Santeiro. Nem tanta oportunidade e alegria nas feições desse povo sofrido.
Texto: Wallace Nunes